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A minha Capitu traiu

Não sou novo nesse inescapável privilégio humano chamado sofrimento. De uma infância disforme ao cruento encontro com o corpinho defunto de minha irmã, o mal em minha vida não é uma teoria abstrata, mas um de meus mais dedicados pedagogos. Todavia, em um único campo, subestimei a sua presença.
Nunca me imaginei afastado daquela que nem nos meus piores tormentos imaginei que se chamasse Eunice.
Tanto quanto a Eunice do abismo alheio, foi a protagonista de uma cruel peça teatral, apresentada em um palco escuro, insalubre, sem qualquer beleza escondida. Durante meses, a minha vida tornou-se impossível. Mesmo com o delicado colo de Santa Teresa, o mundo, mais uma vez, pareceu-me o lugar moldado para deteriorar o que eu gostaria de ser. Por noventa dias, experienciei a decomposição da morte. Por noventa dias, rompeu-se em mim as conexões com esse mundo mortiço, descorado, seco. Sobrevivi esmaltado de um sorriso fingidor, impactado por uma angústia embebedada do mais profundo desinteresse em afetos. Estive biologicamente vivo, mas com a alma corroída pelos vermes.
Não quero promover enfados. Gosto de chamar ovo de ovo, entretanto, devido ao conteúdo e a muito embasada iminente nulidade matrimonial – que começa a ter a sua tela cada vez mais desenhada -, obrigo-me a adotar os floreios. Não quero convencê-los a acreditar, mas, mesmo com as minhas tatuagens e o meu confessado modo pouco ortodoxo de vida, derivo de uma herança crente de que uma traição é pouco para uma nulidade matrimonial. A minha desgraça tem fundamento consistente.
Escrever sobre as minhas neblinas é uma horrível tentativa de amenizar os sofrimentos que certos golpes psicológicos promoveram. Estar aqui após longos dias carregados de sofrimentos e angústias – em que torna-se impraticável o esforço de inventariar a soma de tentativas, de extravios, de vômitos e de dias inúteis que precederam a composição deste texto – é uma conquista. Nestas linhas, supero em partes o susto do convívio com essa macabra descoberta, que, inescapavelmente, deixa-me resíduos. Por aqui, poupo-me das inescapáveis perguntas sobre a minha Eunice. Por aqui, materializo muitas de minhas conversas com o meu pároco de aldeia. Por aqui, posso dizer que não tenho bem a certeza de ter experimentado algum fragmento do céu, mas do inferno não tenho qualquer dúvida.
Desde os meus dezesseis anos a minha Eunice foi a solução de mistérios. Em 2006, ainda que de maneira turva, descobri o amor. Antes de conhecê-la, andei nos labirintos das ruas perseguido por minotauros. Marchei, corri e estive errante até conhecer aquela que foi a suma e a integralidade de meus últimos doze anos. Amei com a força da totalidade que fui capaz de juntar. Ela foi o todo do meu outrora composto afetivo.
Quanta dor com essa procissão de falsidades. Ao menos parei de andar desorientado, de pensar nas palavras de ternura que ofereci e de esforçar-me à compreensão desse absurdo. Esses doze anos ficarão na minha memória; a sua existência está marcada no tempo, presa na realidade de nossas vidas que, hoje, escrevo no plural, mas que, piamente, sempre escrevi no singular. Doze anos que não foram. Soma de tantos projetos irrealizados de vida. Doze anos que fomentaram os sonhos de uma ordenação de capítulos embelezados com os nossos filhos e com a nossa velhice. Achei que te fazia feliz, minha Eunice, mas percebi, por sua alegria de plástico, que só servi à humilhação.
Ainda me sinto só, muito só, terrivelmente só. Todavia, há certos instantes arrebatadores em que dispersamos a lembrança dos afetos antigos e assim inauguramos uma nova etapa de nossa existência. Experienciei algumas vezes esse assombro, mas nunca como o do dia 20 de agosto de dois mil e dezoito. Nessas horas a consciência do “saber que fez o bem” é uma confusa mistura de alívio com crise. Sei que sofro, enquanto ela está mundanamente feliz. Sei que amei, enquanto ela me envergonhou. Sei que por você desnudei a minha alma, e que como abono fui trocado por desconhecidos. Sei que fui fiel, enquanto ela me iludiu. Sei que nunca esqueci de nossas horas paroquiais, enquanto ela fez de mim um símbolo de piadas australianas. Sei, simplesmente sei, de tantos afetos, episódios. Antes que alguém queira me consolar, continuo acreditando que a nossa existência é a antessala de uma apoteose. Deus não tem culpa nos nossos sofrimentos. Ele não tem culpa de minha vida matrimonial ter sido formada por uma sucessão de ilusões unilaterais.
De acordo com o nosso inescapável Gustavo Corção “O homem precisa mais de assunto do que de pão”. Por aqui, deixei uma fartura de temas laterais, vide as mentiras, os desencontros, o amor-próprio e a solidão.
Contudo, mais do que um desabafo esmaltado de esclarecimento, quero demonstrar que sobreviverei a mais nova convalescença desta vida cheia de paradoxos. Chegar a estas linhas, em parte, é uma vitória. Conseguir andar com esse absurdo foi um êxito comemorado. Sair das profundezas desse precipício já é uma realidade.
Neste último parágrafo, com o coração contrito, posso dizer que a minha bandeira testemunhal será a de alguém que dissipou mais essa situação. Resistirei aos meus demônios. Viverei agarrado na vontade da crença de ter nascido em um mundo em que os sinais da passagem de Cristo são uma doce realidade.
Estou sem palavras professor. Que Deus te conforte.
Não me lembro da última vez em que apreciei tanto um texto. Te desejo apenas o melhor.
Agarra-te em Cristo e na Virgem Santíssima.
Thomas… você não me conhece, mas leio seus textos há muitos anos. Lembro de um texto sobre a terrível morte de sua irmã, que me tocou profundamente… quantas vezes lembrei dele ao comunicar a morte de um paciente meu a algum familiar. Eu nunca me esqueci daquele texto, da sua sinceridade cruenta e bela à sua maneira. Tampouco esqueci este. Eu o li pela primeira vez quando você o publicou, e ainda volto de tempos em tempos para relê-lo – e para de alguma forma te enviar força. Desejo muito que tu tenhas superado mais esse episódio na tua vida,… Leia mais »