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Cigarros, café e um pouco de conversa. Isto é tudo o que preciso.

O meu critério para escrever é o de anunciar a interioridade sem ceder à intimidade.
Quem toca este texto toca a fisionomia do meu espírito.
Para Schopenhauer há três tipos de autores; existem os que escrevem sem pensar, os que pensaram antes de se pôr a escrever e os que pensam enquanto escrevem. Tento ser o terceiro. Ele também disse que a pena está para o pensamento como a bengala está para o andar. Concordo.
O problema da existência sobrepõe todos os meus outros problemas e finalidades. Minha digestão existencial é difícil. Tomei muito sangue e pouco leite. Dizem que a fé é não pensar nisso, mas entregar-se confiadamente aos braços de Deus. No mar revoltoso, também sinto os ventos. Não sei se os mesmos que São Pedro sentiu.
Quem já viveu ao menos uma vez vai entender o que é ter a consciência faminta pela necessidade de compreender a amálgama dos três tempos da existência. Sinto o impulso do porvir, o combate do presente e o prolongamento do passado, e senti-los desenvolve as minhas faculdades e aptidões. A memória é um alicerce para a minha personalidade.
Dizem que o homem é um animal racional. Nem sempre fui e também por isso tenho muitas dúvidas se os outros são. Não só pelas pessoas estúpidas que se encontram por todos os lados ou por perceber como as cabeças banais se parecem, gosto de permanecer fora de moda. Desloco-me dos que não parecem sentir-se. A maioria dos homens é superficial. Nem todos sabem, mas o horizonte intelectual do homem pode até ultrapassar o do animal. As cabeças pensantes são apenas exceções. Todo mundo é sempre uma cópia de uma cópia, real ou mental.
Escrever é a imposição da minha liberdade. Não compus algumas páginas para facilitar o consumo da minha vida privada. Não escrevo com o estômago. Este texto não é alguma digestão química. Recorro não só ao intestino para digerir os restos que recebi como alimentos.
O homem de carne e ossos é o que nasce, sofre, morre, ama, sente a dor com consciência e finalidade, mesmo na miséria. Não quer querer a morte. Opõe-se ao que se oferece como irremediável, como dado. Como foi no meu caso, é o que luta contra o seu vigente.
O tempo é também a matéria-prima do meu sentimento vital chamado História do Brasil. Como historiador, na vastidão dos tempos pretéritos vividos pelos Nabucos e também pelos Paranhos, luto para não querer imitar o judeu errante. No fundo do meu abismo, torna-se tentador querer fugir desses últimos dias de pedófilo do bem, gripezinha, terceira instância, milhares de abortos. Aprendo todos os dias que o bom historiador é aquele que também suporta os conflitos de seus dias e que busca a justa distinção entre o que é necessário e o que é supérfluo. Em dias de glorificação mútua sem escrúpulos, evito ter todas as explicações sobre coisas que qualquer um pode pensar. São esforços muitas vezes dolorosos. Há angustia quando conhecemos alguns lineamentos da verdade histórica.
A minha vida privada é um lugar precioso. Na minha biblioteca, a minha interioridade busca a verdade. Houve tantas situações vividas com esses livros que os dias que fazem publicidade do privado não seriam capazes de absorvê-las.
Meus livros já foram guardados em diferentes salas. Desde a primeira sala própria tenho a minha cadela, o ser que reúne a totalidade de todas as perguntas e de todas as respostas do meu desfile de estados de consciência. Ela foi um presente da mãe da minha irmãzinha, que hoje senta no colo de Santa Teresa. Nem sempre acho que a filhinha de um homem estranho está sentada na eternidade. Há dias que só imagino os vermes triturando todos os seus órgãos. Dói ter pouca fé.
Chama-se D’Alessandra a minha cadela. Seu nome foi escolhido desde muito antes de sua chegada. Eu a vi mais raciocinar que gemer ou rir. Precipitadamente, você deve estar achando que exagero, mas não é o caso. Seja por um petisco ou por uma jogatina de bolinhas, eu a vejo ser meticulosa.
Passamos juntos por períodos longos e enviesados. Se a maior santidade de um templo é ser o lugar em que se vai chorar em comum, minha biblioteca, sempre na companhia da D’Ale, é o meu mosteiro. Fenomenologicamente, nossa relação é um certificado de presenças que tem força sobre o tempo. Personalizamos o todo para nos salvarmos do nada.
O laço comum que nos une tem dor e catarse. Não sei elencar todos os nossos episódios. Há muita circunstância. Mais do que as evidentes morte de minha irmã, separações, nascimento de minha filha. De vidas se compõe nossa vida. Não deve haver dor maior do que se recordar do tempo feliz na desgraça, mas, em contrapartida, não deve existir algum prazer superior ao de rir da desgraça no tempo afortunado. Não basta curar a peste, é preciso saber chorá-la.
Pensar no seu ser implica pensar em Deus. Amá-la é um contrassenso se não há deus. Mesmo no meu abismo, onde o ceticismo racional encontra-se com o desespero sentimental, descubro bases sólidas para perceber a doçura do criador ao fazer dos cães o nosso elo com o paraíso. Ter um cachorro é descobrir a própria inanidade perante a Natureza. Percebemos que não somos tudo. Não se trata de sobrenaturalizar a natureza, menos ainda de achar que cachorro é gente. A questão que me comove é que o cão demonstra, anonimamente, o triunfo de grandes princípios do Gênesis. Ao me fazer pensar na criação, minha cadela me ajuda a sempre sair do nada.
Aqui só deixo algumas centelhas de consciência que brilham nas corriqueiras trevas. É necessário que você sinta dentro de si o que quero transmitir. Essa existência que se consome em submissão me ajuda a ter a consciência de que luto para me libertar da matéria. Em nós, nascem e morrem a cada instante obscuras consciências, almas elementares, e esse nascer e morrer constitui nossa vida. Foi o furioso anseio de dar finalidade ao universo, de torná-lo consciente e pessoal, que me levou a crer que só Deus para justificar que um animal possa ser um consolo no desconsolo.
Se para o homem a língua é a substância do pensamento, para a minha D’Alessandra é o instrumento que tantas vezes lambeu as minhas misérias. Há anos, com a sua bolinha na boca e seus atos fielmente repetidos, minha cadela executa exemplarmente o seu mito de Sísifo.
O poetinha dizia que o uísque é o melhor amigo do homem, ele é o cachorro engarrafado. Eu digo que o cachorro ajuda nas tantas vezes que repetimos as palavras do evangelista: eu creio, senhor, ajuda-me na minha falta de fé.
Escrevi só a essência do papel da minha cadela no meu hospital existencial. Há muito mais a ser dito.
Simplesmente, cheio de emoção e de verdades. Ao ler o texto me vi em alguns trechos os quais falam do conhecimento, dos pensamentos sobre a fé. É o típico professor que considero verdadeiro. Sou pedagoga e no caminho comecei aconhecer a história do Brasil, e me apaixonei!!! Obrigada pelas reflexões e ensinamentos!!!!
Me levou a muitas reflexões. Dia maravilhoso este em que vc escolheu colocar para fora aquilo que não conseguimos ver em vc. Muito sucesso na sua vida!!!
Muito bom!!!
Um belo texto, tão bem escrito que torna gostoso le-lo.
Senhor, aumenta a nossa fé!
É um convite ao seu interior. Poucas palavras para um homem que tem muito a dizer. Texto tão maravilhoso…. Só não é mais maravilhoso do que aquele que o escreveu.