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O diletantismo especulativo de Walter Kohan ataca a inteligência

Há alguns anos, repito que se fôssemos um país intelectualmente saudável, jamais veríamos um jovem amante da disciplina de Heródoto refutar o Patrono da Educação de seu país. Desgraçadamente, não é essa a nossa realidade. Aqui na terra de Tibiriçá há necessidades pedagógicas de todos os tipos e gostos. Convivemos com problemas que, há décadas, estão confortavelmente instalados, e com outros mais contemporâneos. Há alguns que são socialmente mais concretos e outros mais abstratos. Na mesma proporção, existem os dilemas ideológicos, gestados desde Benjamin Constant, mas que são sempre instrumentalizados pela maquinaria da política brasileira. Como ensinou Guerreiro Ramos em uma frase que parece mais própria de nossos dias do que os de sua composição: “No Brasil de hoje, temos que andar depressa porque o processo histórico desatualiza rapidamente o que sobre ele escrevemos e pensamos.”
Em um país onde 48% da população sequer tem coleta de esgoto, torna-se, para muitos de seus habitantes, sociologicamente quase supérfluo falar sobre a pedagogia e o valor simbólico de Paulo Freire; contudo, é justamente essa parcela tão vulnerável da população a que mais sofre nas mãos dos promotores dessa teoria sectária. Dissecá-la é uma forma de libertar o brasileiro excluído socialmente, que, muitas vezes, quando em contato com essa pedagogia, ao invés de encontrar no espaço escolar uma porta para ampliar o seu imaginário, acaba se deparando com textos e metodologias que convertem assassinos e aventureiros, como Che Guevara e Lenin, em juízes da história.
Ciente de que uma das principais funções do debate intelectual é a de investigar os temas, e de que a luz do público, na maior parte dos casos, obscurece tudo, cometi o “pensamento crime” de investigar os motivos que transformaram Paulo Freire no Patrono da Educação Brasileira. Esse meu percurso intelectual não possui nada de extraordinário. Em minha vida foi sequer inesperado. Apenas escolhi um objeto histórico para analisar. Tornei-me o autor que, deslocado dos lugares comuns, incorreu no pecado de estudar um pensador muitas vezes tratado como inimputável. Inevitavelmente, pela essência de meus estudos, analiso seus principais sucessores. Homens e mulheres que buscam ou buscaram expandir as sílabas de Paulo Freire, demonstrando o suposto préstimo que a sociedade brasileira lhe deve. Nessa categoria de autores encontramos Walter Kohan, autor cuja presença nessa turma se legitima mais por sua cobiça e menos pelo valor de seus textos. Seu mais recente livro Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica [1], devidamente distribuído em cinco capítulos, apresentação, apêndice, notas devidamente explicadas, referências bibliográficas, duas entrevistas – com o devido destaque à que foi realizada com Lutgardes Costa Freire –, empreende apenas uma fileira de pensamentos sinônimos.
Com o meu utópico desejo de elevar o debate em torno de nosso (ainda) Patrono da Educação, superando os homens e mulheres que se servem dessa pauta para explorar a boa fé e o sentimento patriótico de muitos brasileiros, dirijo-me ao grande número daqueles que, distante de igrejinhas, querem compreender quais são os principais problemas desse livro escrito por um dos mais festejados continuadores do legado de Paulo Freire.
Qualquer resenha crítica deve levantar o tapete que esconde a trivialidade dos comentários laudatórios. Uma vez que crítica, esta resenha não busca produzir uma mera transcrição dos elementos que compõem o livro de Walter Kohan. Valorizo o traçado histórico de que Kohan é o primeiro autor “tipicamente freireano” a citar o meu livro de estréia, o Desconstruindo Paulo Freire. Porém, a minha valorização se limita a isso. Desprovido de qualquer capacidade crítica, seu texto, quando pretende descrever o meu trabalho, só repete o clássico método freireano do “não li e não gostei”. Pulemos o óbvio ululante de que o autor, que se apresenta como um defensor da educação, deveria ter dado o exemplo de uma razoável postura intelectual e, com isso, argumentado com o mínimo de embasamento. Não escrevo estas linhas por revanchismo. Menos ainda por um desejo de monopolizar o debate intelectual ou por querer defender alguma espécie de discurso ideológico. Minhas motivações são puramente intelectuais. Atendi ao chamado do próprio do autor:
“O resultado aqui apresentado talvez não convença os adoradores nem os difamadores de Paulo Freire. É difícil apreciar algo diferente do que se adora ou difama. Minha esperança está colocada em quem quer pensar junto, mesmo – ou sobretudo – em quem pensa diferente. Espero gerar diálogos insuspeitados” [2]
Há nessa citação a primeira grande incoerência apresentada no livro. Demagogicamente, o autor se coloca como alguém que está acima de adoradores e difamadores de Paulo Freire. Algo anômalo quando confrontado com o seu texto apologético. Antes de quaisquer apresentações, o autor se coloca como um pesquisador freireano que não busca “consagrar esta ou aquela corrente, origem ou escola”. Todavia, pouco a pouco, ao longo de seus textos, isso não se comprova.
Incorporado ao cânone freireano por muitos acadêmicos brasileiros, Walter Kohan escreveu um livro que, quando pretende ser biográfico, apenas repete um conjunto de fatos já narrados por Ana Maria Araújo Freire, viúva de Paulo Freire, em textos como Paulo Freire, uma história de vida. [3] Por sua vez, quando a obra busca atender ao seu principal chamado: “filosoficamente pensar, junto com Paulo Freire, a especificidade do valor político de educar”, seus problemas se sobressaltam ainda mais. Linha a linha, encontramos em Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica asserções atiradas sem os mais básicos rudimentos teóricos. O entusiasmo do autor não se restringiu à defesa dos soldados de João Pedro Agustini Stedile, mas se manifestou em tal grau que chega a compreender Paulo Freire como um “pastor filosófico, com sua bengala guiada pelo cristianismo e pelo marxismo”.
A despeito de seu pretenso equilíbrio intelectual, Walter Kohan consagra-se como um dos mais entusiasmados defensores de Paulo Freire. Entusiasmado a ponto de exaltar o envolvimento do Profeta de Jaboatão com o Movimento Sem Terra: “As marchas dos Sem Terra testemunham uma andarilhagem inventiva, curiosa, crítica, rebelde, inconformada e, ao mesmo tempo, amorosa, amorosamente armada (…) As Marchas dos Trabalhadores Sem Terra, que revelam o ímpeto da vontade amorosa de mudar o mundo. As marchas dos Sem Terra são a expressão de seu amor errante, o amor que vai em busca de seu lugar.”[4] Walter Kohan, ao desconsiderar em sua pretensa discussão técnica a encíclica Divini Redemptoris ou as teses marxistas do vínculo entre a religião e a alienação social, ignora o fato de que, enquanto católico, Paulo Freire adotava linhas políticas e sociais que a igreja excomunga e, enquanto marxista, Paulo Freire foi um alienado que propôs uma descabida harmonia metafísica. Com a missão intelectual de examinar em seu livro as circunstâncias mais complexas de Paulo Freire, o autor se deu por satisfeito ao apresentá-lo como a figura humana que transforma dois princípios existenciais inconciliáveis em uma nova vereda transformadora. Independentemente das crenças pessoais de Paulo Freire, se ele validava ou não essa excomunhão ou se ele concordava com a ortodoxia marxista, uma vez que em ambos os casos ele foi dissonante, esses temas deveriam ser discutidos. Menos por Paulo Freire, que poderia ser analisado à luz de suas incoerências, e mais pelo que Walter Kohan almejou discutir em seu livro que nada discute.
Ao longo de seu livro há um sistemático despejo de filosofias atribuídas ao pensamento de Paulo Freire e quase nenhum comentário competente sobre como se desenvolveu a articulação desses autores no sistema educativo que notabilizou Paulo Freire. Observem algumas:
“Assim, são muitos Paulo Freire: marxista (ora ferrenho, ora eclético, ora, ainda, tíbio), teólogo da libertação, existencialista, fenomenológico, pedagogo crítico, escolanovista, personalista.” [5]
“Podemos então ver nitidamente, em Paulo Freire, a presença da tradição do antigo herói filosófico, embutida das figuras de Cristo e Marx, o primeiro sob o campo da fé, o segundo, em nome da ciência da sociedade.” [6]
“Paulo Freire, numa região periférica de um país periférico como o Brasil, busca cuidar dos oprimidos de que poucos parecem cuidar, com sua fé religiosa cristã e sua fé científica marxista na forma de pensar as relações sociais e políticas.” [7]
“Freire se percebe e se apresenta como um pastor dos pobres e excluídos em nome de Cristo Eu fiquei com Marx na mundaneidade à procura de Cristo na transcendentalidade” [8]
Tendo em vista que o autor apresenta de modo precário o papel do catolicismo na formação de Paulo Freire, apresentarei alguns axiomas para que a discussão saia da verborragia laudatória de Walter Kohan e se localize nos fundamentos específicos do pensamento do (ainda) Patrono da Educação Brasileira.
Ciente de que Karl Marx compreendia o aspecto agregador e normalizador da religião, Paulo Freire julgava que a relação entre a religião e o marxismo não poderia ser simplesmente ignorada ou relegada a um canto obscuro. O autor de Pedagogia do Oprimido [9] sabia que estava em oposição ao catolicismo romano, ou seja, entendia-se como um desertor. Justificava esse entendimento com sofismas similares ao de Rosa Luxemburgo: “Como é que a Igreja desempenha o papel de defesa da opressão rica e sangrenta, em vez de ser o refúgio dos explorados?” Consoante ao pensamento da militante polonesa, seu cristianismo interpretou de modo particular a vida dos primeiros cristãos. Afirmou que a institucionalização da Igreja Católica perverteu o pastoreio do clero. De acordo com outros autores que compartilham dessa chave interpretativa, foi com o Concílio de Nicéia que a igreja se separou do povo, e, deste modo, ao longo de séculos, foi se transformando em partícipe da escravização humana. Seu discernimento espiritual encontrava coerência dentro dessa premissa. Era um católico que, fundamentado nessa leitura historicamente equivocada dos primeiros cristãos, associava o desenvolvimento das capacidades de trabalho e o avanço das capacidades de consumo ao declínio do homem. Em outros termos, é como se os cristãos dos séculos I e II não tivessem as consequências do pecado original para lutar. Viviam em pleno comunismo, em plena ordem estruturada em uma noção de que o consumo de produtos era realizado com bens já acabados. Tal qual esse entendimento interpretativo, as primeiras comunidades cristãs retratam um povo com ausência de mais-valia, transfigurando-se em um dos raros exemplos históricos em que houve uma completa igualdade material entre os homens. Essa realização era restrita às comunidades, pois, segundo as interpretações marxistas mais clássicas sobre esse período, em nível social, não ocorreriam mudanças drásticas, em razão de que era impossível iniciar o trabalho comunal porque a produção baseava-se em escravos. Ao seu modo, Paulo Freire realmente via-se como um profeta restaurador da ordem espiritual, alguém capacitado para realizar “com a sua missão educadora” as suas interpretações dos ideais cristãos na Terra.
Essa suposta missão redentora é incoerente em pelo menos duas impressões:
Como Católica, por ignorar a história do catolicismo, a doutrina do pecado original, os fundamentos essenciais à caridade e o fim último da existência;
Como marxista, por evitar o confronto entre essa crença metafísica com uma ordem social alienada, que, dentro da sustentação teórica do marxismo é bem explicada por István Mészáros:
“A alienação da humanidade, no sentido fundamental do termo, significa perda de controle: sua corporificação numa força externa que confronta os indivíduos como um poder hostil e potencialmente destrutivo. Quando Marx analisou a alienação em seus Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844, indicou os seus quatro principais aspectos: a alienação dos seres humanos em relação à natureza; à sua própria atividade produtiva; à sua espécie, como espécie humana; e de uns em relação aos outros. E afirmou enfaticamente que isso não é uma “fatalidade da natureza”, mas uma forma de autoalienação. Dito de outra forma, não é o feito de uma força externa todo-poderosa, natural ou metafísica, mas o resultado de um tipo determinado de desenvolvimento histórico, que pode ser positivamente alterado pela intervenção consciente no processo para transcender a autoalienação do trabalho”. [10]
Sei que elencar as desgraças do comunismo é tão velho quanto a existência de sua teoria, contudo, dado que os textos de Paulo Freire transbordam de referências a algozes da humanidade e que também esse tema Walter Kohan pouco analisa, julgo pertinente destacar as palavras de Robert Service:
“Regimes comunistas duradouros tiveram muita coisa em comum. Eles eliminaram ou enfraqueceram partidos políticos rivais. Atacaram as religiões, a cultura e a sociedade civil. Esmagaram qualquer expressão de nacionalidade, exceto a que fosse aprovada pelo governo comunista. Aboliram a autonomia do judiciário e a liberdade de imprensa. Centralizaram o poder e enviaram dissidentes para campos de trabalho forçado. Criaram redes de polícia secreta e de informantes. Alegavam que sua doutrina ideológica era infalível e se apresentavam como perfeitos cientistas dos problemas e das necessidades humanas. Isolavam sociedades inteiras para impedir que sofressem a influência estrangeira na política e na cultura. Controlavam a travessia de suas fronteiras com um zelo feroz e tratavam todas as realidades da vida social como algo necessariamente devassável pelas autoridades. Usavam as pessoas como se fossem recursos empregáveis na consecução de seus objetivos.” [11]
Encontramos no texto de Walter Kohan uma precária seleção de argumentos e um silêncio às apologias de Paulo Freire a Che Guevara, Fidel Castro, Mao Tsé-Tung. Por parte do autor, não há qualquer comentário sobre os equívocos sociológicos mais crassos que Paulo Freire cometeu. Quando o autor supostamente analisa os erros do autor de Pedagogia da Autonomia, inventa apenas comentários a lapsos superficiais, como a suposta linguagem machista que os textos de Paulo Freire tiveram durante parte de sua vida. Faz-se repetir: essa crítica a certo comportamento de Paulo Freire é tão despojada de análise que é como se ele nunca tivesse justificado genocídios mundo a fora, propagando-os como sistemas científicos, humanitários. Ao frisar que o “bonito de Paulo Freire é a sua relação com o que ele percebe como erros, sua capacidade para fazer também desses erros percebidos um motivo para errar no outro sentido do verbo, para vagar, se deslocar, viajar” e que “há poucos autores que tenham relido a si próprios tanto quanto o educador de Pernambuco releu, em particular, a Pedagogia do Oprimido”, Walter Kohan, mais que ratificar que o (ainda) Patrono da Educação Brasileira nunca encontrou quaisquer equívocos em suas fartas defesas de tiranos ou em suas justificativas para o extermínio de vidas, manifesta assentimento: “Citando Che Guevara, Freire lembra que toda verdadeira revolução nasce do amor e só pode ser um ato amoroso.” [12] Historicamente, Paulo Freire viu os resultados das tentativas de aplicações das políticas socialistas, e, não obstante, morreu deslumbrado com a ditadura cubana, como testemunha Sérgio Haddad na obra O Educador: um perfil de Paulo Freire:
“A notícia do seu falecimento foi motivo de comoção no Brasil e no exterior, ganhou as páginas dos jornais e um grande espaço nos demais veículos de comunicação. Também causou consternação entre aqueles que o aguardavam para compromissos, depois de muito esforço para conseguir espaço em sua agenda. Uma atividade, em particular, era muito aguardada: retornaria a Cuba entre os dias 2 a 10 de maio para receber das mãos de Fidel Castro o título de doutor honoris causa pela Universidade de Havana. Seria a sua segunda visita ao país; na primeira, em 1987, dez anos antes, poucos meses depois do falecimento de Elza, ele era ainda muito pouco conhecido na ilha. Durante a passagem pelo país, concedeu uma entrevista à repórter Esther Peréz, da revista Casa, na qual confessou sua emoção em estar em um país em que nenhuma criança estava fora da escola e que ninguém passava fome, um país onde não havia ricos que oprimiam nem miséria que humilhava, como ocorria no Brasil” [13]
Os livros do indicado ao prêmio Nobel da Paz de 1993, incontestavelmente, são sucessos de vendas. Para dar um exemplo, em apenas nove anos de sua publicação, a Pedagogia da Autonomia já havia superado os seiscentos mil exemplares vendidos. Por sua vez, a Pedagogia do Oprimido, sua principal obra, foi traduzida para mais de vinte idiomas. Nas palavras de Walter Kohan, trata-se de um livro marcado por um “imaginário viajante, que faz partilhar da mesma viagem autores tão dessemelhantes quanto Martin Buber e Mao Tsé-Tung, junto a outros aparentemente também muito distantes entre si, como Hegel e Che Guevara ou Frantz Fanon e Karl Jaspers”.[14] Os leitores mais dispostos aos métodos de Paulo Freire consideram que essa amálgama de autores é o acerto mais significativo de Pedagogia do Oprimido. Nas palavras de Sergio Haddad, este um freireano de qualidade superior à de nosso autor:
“Em Pedagogia do oprimido, permanecia o humanismo cristão, inspirado em autores como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin e Alceu Amoroso Lima, mas incorporava, em uma aparente contradição, autores como Marx e Engels, Lênin, Sartre, Marcuse, Frantz Fanon, Lukács, Althusser, em uma clara aproximação com o marxismo, além de citações de Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres e Mao Tsé-Tung, numa alusão aos movimentos revolucionários daqueles anos.” [15]
Walter Kohan também a ressalta, porém de maneira menos técnica e mais visguenta:
“Paulo Freire, como veremos no próximo capítulo, chama-se a si mesmo ‘menino conectivo’, e sua escrita tem também esse caráter de conectividade e conjunção que o faz reunir coisas aparentemente muito dessemelhantes”.[16]
Consolidada durante a passagem de Paulo Freire pelo Instituto Chileno para a Reforma Agrária, Pedagogia do Oprimido tornou-se a obra mais importante de sua trajetória de pensador brasileiro. Sergio Haddad chega a escrever que já em 1972 “o livro e seu entorno teórico passaram gradativamente a ser hegemônicos nos convites que recebia”. Em suas páginas, encontramos os maniqueísmos que caracterizaram parte do pensamento marxista, “opressor” e “oprimido”, e as conhecidas sentenças freireanas “ninguém educa ninguém” e “uma educação conscientizadora deveria promover a emergência da consciência dos oprimidos e sua inserção crítica na realidade”. Publicada no ano de 1968, ao longo de uma década, Pedagogia do Oprimido desfrutou de boas condições para a sua disseminação. A mais patente são as conferências na UNESCO, mas não ficam distantes as mais de 150 viagens internacionais que o pedagogo fez enquanto trabalhou para o Conselho Mundial de Igrejas. Essas viagens tinham como maior propósito propagar o conteúdo de seus livros por todos os continentes. Convenhamos que assim o caminho para ser lido em diferentes países passa a ser bem facilitado.
Vinculado ao pensamento dialético do “jovem” Karl Marx, definição cronológica que, segundo Raymond Aron, sintetiza a teoria da História em que o filósofo alemão expõe a sua fundamentação dialética, o seu conceito de alienação e o seu materialismo dialético, Paulo Freire compreendeu a sua vocação de acordo com o princípio marxista exposto na Tese 11 sobre Feuerbach “Até aqui os filósofos têm interpretado o mundo. A questão é transformá-lo”. Dessa maneira, a despeito de ter chamado Che Guevara de sinônimo de amor por concordar com os assassinatos que ele liderou, o autor de Pedagogia do Oprimido considerava-se alguém que “gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”. Paulo Freire dizia ter estranheza com assassinatos: “Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgenitificando-se, no ambiente que decresceram em lugar de crescer”[17]
Muito mais do que os conceitos de mais-valia e de luta de classes, a submissão do homem ao poder dos que pretendem representá-lo é a premissa marxista mais íntima do parecer intelectual de Paulo Freire. O (ainda) Patrono da Educação Brasileira foi um marxiano de leitura exígua, que, quando analisava a sua linha de pensamento, sempre se demonstrou incapaz de análises robustas. Seus comentários eram simplistas. Diziam mais sobre um engajamento e menos sobre filosofia.
Walter Kohan, o biógrafo incapaz de encontrar qualquer ambigüidade moral em Paulo Freire, também se equivoca ao inseri-lo dentro da tradição marxiana. Primeiro por considerar que a Tese 11 sobre Feuerbach seja um escrito tardio de Karl Marx. O autor confunde a data de publicação com a de sua escrita. Publicados de maneira póstuma apenas em 1888, esses escritos foram desenvolvidos ainda na fase em que Karl Marx disputava intelectualmente com os chamados “jovens hegelianos”, provavelmente no ano de 1845, ano de intensos percursos sociais, que Michael Löwy define como sendo constitutivos para a relação de Karl Marx com as experiências de luta de classes e com os primeiros movimentos socialistas e comunistas europeus. Dessa maneira, em conformidade com os estudiosos mais sérios do pensamento e da biografia de Karl Marx, trata-se de uma obra importante, porém introdutória às teses marxianas, ou quase juvenil. No entanto, o professor Walter Kohan, homem que tentou interpretar o seu biografado dentro de uma tradição intelectual que desconhece, incapaz de investigar os contextos em que seus referenciais teóricos foram produzidos, diz exatamente o contrário, inserindo esse escrito de mocidade de Karl Marx em uma definição oposta: “Considero que duas dessas tradições têm um caráter especial para pensar a relação de Paulo Freire com a filosofia […] Uma dessas tradições, a primeira, vem de Karl Marx num aspecto particular: o Marx tardio, com sua crítica à filosofia especulativa. A referência mais evidente é a Tese 11 Sobre Feuerbach”.[18]
O pretenso intérprete intelectual de Paulo Freire tem bastante rigor na arte de errar. Suponho que erre por religião. Observem que, ao se colocar como aquele que deseja escrever para “privilegiar um estudo filosófico que, ao mesmo tempo, não deixasse a vida dele de fora”, nosso autor, que sequer consegue inserir um texto de Karl Marx em sua cronologia correta, demonstra-se incapaz de alcançar o seu objetivo textual. Essa incapacidade técnica se acentua quando escreve que Paulo Freire e Sócrates tinham semelhanças gritantes porque “ambos se vêem como heróis, profetas em missão pastoral”. Reduzindo a filosofia e o pensamento de Sócrates às práxis sociais, definiu que Paulo Freire foi um filósofo equiparável ao mestre de Platão, não por suas teorias ou sistemas nos quais ele buscou unicamente sustentar sua prática, nem sequer pela qualidade filosófica de suas teorias ou pensamento, mas pela forma com a qual faz de sua vida um “problema filosófico” e de como transformou o seu viver em uma questão existencial de busca por um mundo “sem opressores”.
Nos papéis tão maltratados por Paulo Freire, encontramos tentativas de afirmação em que as inteligências inferiores devem arrastar para o seu nível as superiores, estas inibidas em sua atividade através da intensificação de uma suposta afetividade geral. O pedagogo assimilou que só no comunismo existirá o pleno desenvolvimento da personalidade, graças à propriedade social dos meios de produção. Entendia que a propriedade intelectual priva os demais, oprime-os, e impede a liberdade. O seu bom combate era o de destruir as condições sociais anteriores ao seu Jardim do Éden, dado que uma vez sanado o seu “sofrimento pessoal”, o seu ardor de “intelectual dos desprivilegiados” esfriava consideravelmente. A sua estrutura mental, essencialmente discriminatória, salvava apenas certas classes e castas políticas. Paulo Freire foi claramente marxista no sentido de afirmar uma filosofia que não apenas contemple ou compreenda os problemas da educação, mas que procure transformar as práticas educacionais através de um redirecionamento humano. Foi um pedagogo convicto que a escola era o local ideal para corrigir as alienações produzidas pela práxis estrutural. Neste sentido, nunca deixou de apostar na educação politicamente orientada para a “libertação dos oprimidos”. Esse método pedagógico é desenvolvido segundo o entendimento de que o homem não é o principal agente de seu progresso individual. A chave de sua pedagogia está no convencimento de que somos condicionados pelo meio cultural. Ao proclamar que a educação não pode ser neutra em si, pois ela tende a formar sempre a humanidade seguindo um sentido da vida, apoiando-se em um feixe de valores e direitos a promover, o escritor interpretava a educação do homem como um adestramento.
Como outrora também feito por outro apologista do freireanismo, Frei Carlos Josaphat, nosso autor compara o pedagogo brasileiro com alguém que está além de sua margem comparativa. Para Walter Kohan, Paulo Freire e a sua filosofia idealista comportam uma dimensão de reflexão e outra de ação, estando próximos de uma concepção de filosofia socrática, na qual a filosofia não é um substantivo, uma teoria, mas um verbo. Desconhecendo os rudimentos mais básicos da filosofia socrática, comparou o auto-exame de Sócrates com o de Paulo Freire, este, conforme já explicado por aqui, incapaz de reconhecer equívocos sociais grosseiros. Testemunhem:
“Assim como Sócrates dedica sua vida a tentar acordar os atenienses do que considera uma existência sem auto-exame, Paulo Freire dedica a sua a tentar tirar os oprimidos dessa condição, buscando, ao mesmo tempo, acordar os opressores de sua condição de opressores.”[19]
Afora todos os limites técnicos já apresentados até aqui, o autor extenua até mesmo os seus mais dedicados leitores ao repetir, mais de uma dezena de vezes, que Paulo Freire era um homem encarnado no amor. Imagino ser desnecessário reproduzir essas frases na sua totalidade, mas, com o propósito de aclarar o que analiso, mencionarei alguns exemplos desse engenho enfadonho. Reparem que todas as frases extravasam as mesmas coisas:
“o amor é talvez o valor principal, insubstituível, da vida inteira de Paulo Freire. Lemos e ouvimos isso dele, repetidas vezes, de formas diversas.”[20]
“Obrigado, Paulo Freire. Obrigado pela sua infinita presença infantil. Obrigado pela sua extraordinária presença num presente que não é de ontem, hoje ou amanhã, mas que é, justamente, o presente do tempo da educação. De uma pergunta. De um sorriso. De um abraço. Obrigado pela indelével presença no mundo, cheia de vida, igualdade, amor, errância e infância.”[21]
“O amor que Paulo Freire nos inspira é uma espécie de energia conectiva entre as pessoas e o mundo, uma forma de força de luta compartilhada por uma vida mais vida do que a que estamos vivendo.”[22]
“Não há, praticamente, livro, carta, entrevista de Paulo Freire em que o amor não apareça.”[23]
“Desse amor de outro tempo, Paulo Freire vivia e morria; por esse amor e por esse tempo será lembrado tanto pelos que o amam quanto pelos que o odeiam.”[24]
“São inúmeros os gestos amorosos que acompanham a vida de Paulo Freire, testemunhados por educadores e educadoras de todos os cantos do mundo.”[25]
Portador de uma compaixão que no discurso almejava a solidariedade com infelizes e miseráveis, mas cuja forma histórica mais pura é a de privilégio de seus prediletos, Paulo Freire foi definido por Walter Kohan como um educador amoroso, dotado de fé e confiança na criação de um mundo em que seja menos difícil amar. Mais do que um mero professor, Paulo Freire é definido como o homem que quis, ao seu modo, transformar os homens, tendo como o seu principal adversário o capitalismo, balizado como “inaceitável por muitas razões; a principal delas é, talvez, a forma como torna impossível amar de verdade”. Esse objetivo de formar uma nova humanidade geralmente é vago, utópico e totalitário. Incluído na causa freireana, é o ponto alto da mentalidade do “eu”, que vê as outras pessoas como um meio de auto exaltação. Como nos episódios em que justificou genocidas, Paulo Freire acreditou que estava vestindo algum tipo de capa angelical justificadora, irrealidade desumana que define a parte mais substanciosa do propósito historicamente aplicado nos regimes totalitários, dado que justifica a renovação constante da violência. Deste modo, cabe a pergunta: é lícito distorcer os fatos para alcançar um fim prático?
Defino Walter Kohan como um ideólogo, que, como tal, elabora os seus princípios intelectuais conforme certos valores propostos como fins a perseguir. Trata-se de um autor que tem muitas conclusões sem os rudimentos teóricos necessários e que interpreta a cultura como aquela que deve eliminar ou enfraquecer os oponentes de sua doutrina. Para ele, sou uma ameaça que o obriga a tomar consciência de seu papel histórico. Mesmo sem ter condições intelectuais para desmentir os artigos que escrevi a respeito de Paulo Freire, apresenta-se como um autor marcado por contornos textuais que se pretendem quase infalíveis. Na autodeclarada qualidade de defensor da verdade pedagógica, Walter Kohan presenteia seus leitores com inverdades a meu respeito. Tendo em conta o precário apanhado intelectual que compôs, nada mais coerente que fizesse isso. Acusa-me em seu livro de que sou adepto do projeto “Escola sem Partido”, que sou “ao mesmo tempo autor, editor, promotor, vendedor e distribuidor de sua obra”[26] e de que tenho “um desprezo profundo pelo mundo e pelos valores estéticos, éticos e políticos que Paulo Freire afirma e apresenta: os do povo nordestino, a cultura popular, a escrita cuidada, engajada, que expressa essa cultura”.[27] Quanto ao primeiro tema, sempre fui contrário ao projeto, ainda que valorize a discussão que ele empreende. É verdade que inclusive participei de uma sessão na Câmara dos Deputados onde o projeto era o assunto principal. Todavia, naquela ocasião falei especificamente sobre a pedagogia de Paulo Freire. Em minhas aulas, admito repetidamente a falência institucional do MEC e da Constituição de 1988, conseqüentemente, não tenho como ser favorável a um projeto que se escora, direta ou indiretamente, nessas duas propriedades políticas. Quanto ao segundo ponto, trata-se de um raro acerto de Walter Kohan. Chama a atenção que, com este inabitual acerto, o autor tenha descrito melhor o meu trabalho que o de Paulo Freire. É com deleite que assumo que exerço ou exerci todas essas funções. Muitas vezes fui o autor que empacotou o seu livro e os levou aos correios. Não vejo qualquer problema quanto a isso. Vejo menos ainda ineditismo. Há muitos exemplos na cultura brasileira de autores e autoras que fizeram bem mais do que esses serviços de auto publicação. Destes, poucos foram em sua estréia best-sellers e muitos escreviam melhor que eu. Dispensarei os exemplos. Quanto ao último ponto, sendo eu um declarado filho do nordeste, considero-o apenas uma medida desesperada do autor em fazer a sua fé em estereótipos valer mais do que os fatos.
O diletantismo especulativo de Walter Kohan ataca a inteligência. Como o de seu mestre, utiliza seres humanos como se fossem recursos naturalmente empregáveis na consecução de seus objetivos. Sua busca não é pela expressão intelectual, mas por esmagar qualquer expressão que o seu ego não aprove. Seu livro, mascarado com um cientificismo barato, é só mais uma tentativa em apresentar uma doutrina ideológica como infalível.
Referências:
[1]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019.
[2]. Ibid. p. 28.
[3]. FREIRE, Ana Maria Araujo. Paulo Freire: uma história de vida. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
[4]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 139.
[5]. Ibid. p. 61.
[6]. Ibid. p. 78.
[7]. Ibid. p. 76
[8]. Ibid. p. 76
[9]. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
[10]. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016. Prefácio.
[11]. SERVICE, Robert. Camaradas: uma história do comunismo mundial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. Prefácio
[12]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 128.
[13]. HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019, p. 216.
[14]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 150.
[15]. HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019, p. 102.
[16]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 150.
[17]. HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019, p. 226.
[18]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 63.
[19]. KOHAN, Walter. Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. 1. ed. Belo Horizonte: Vestígio, 2019, p. 79.
[20]. Ibid. p. 141.
[21]. Ibid. p. 220.
[22]. Ibid. p. 214.
[23]. Ibid. p. 128.
[24]. Ibid. p. 142.
[25]. Ibid. p. 124.
[26]. Ibid. p. 248.
[27]. Ibid. p. 248.
Mais um artigo para a reserva intelectual do Brasil de Nobrega, Nabuco e Jose lins do Rêgo. Thomas, Tu és o nosso Alexandre Herculano ! Parabens!
Obrigado por nos prestigiar com este artigo magnífico!