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Otto Maria Carpeaux e a revista literária Província de São Pedro*
- 1 de fevereiro de 2018
- Autor: Thomas Giulliano
- Assunto: Artigos
Por Thomas Giulliano Ferreira Dos Santos
*Artigo apresentado à PUCRS
Otto Maria Carpeaux e a revista literária Província de São Pedro
No hemisfério dos homens cultos, dizem que é difícil analisar a obra de um crítico literário consagrado. No meu atual estado intelectual de jovem amante da disciplina de Heródoto, comento que, mais do que delicada, trata-se de uma empreitada fatigante, que exige a máxima que foi tantas vezes repetida por Marcel Proust e Thomas Edison: “Talento é 1% inspiração e 99% transpiração”. Este meu atual labor atravessa a preocupação em revelar o sentido do fato estudado e se encerra na tentação de agregar qualquer coisa aos esforços interpretativos para a obra de Otto Maria Carpeaux.
Tenho consciência do quanto é difícil falar do legado desse homem douto, crítico cultural de vanguarda, guia de seus leitores na selva da literatura ocidental. O austríaco radicado no Brasil foi um escritor que evitava a hesitação. Intelectual que não abusava do emprego do gosto, que tinha a qualidade de transmitir uma contínua segurança de julgamentos. Nas palavras do também crítico literário Wilson Martins:
Otto Maria Carpeaux é bem isso: o interior de uma infinita catedral, povoada das vozes misteriosas dos santos, dos profetas, dos artistas, tudo ordenado pela mão de uma régisseur invisível e onde o silêncio que reina não é pesado, mas cheio de insinuações de esperança e de lições de sabedoria.[1]
À vista disso, escolhi analisar especificamente as suas onze colaborações à revista Província de São Pedro. Tenho o juízo de que elas ainda não receberam a adequada análise que requerem. Cabe expor que o periódico dirigido por Moysés Vellinho foi publicado pela Editora Globo, no período de 1945 a 1957, com um total de 21 exemplares e contou ao todo com quase trezentos colaboradores, sendo Otto Maria Carpeaux um dos mais assíduos.
O estilo crítico de Otto Maria Carpeaux
Ávido por mostrar uma boa parcela do conjunto intelectual de Otto Maria Carpeaux, ramifiquei este artigo em partes que auxiliarão no entendimento de seus escritos. Tomarei cuidado para que a abundância da documentação investigada não sufoque o que importa: a obra do autor. Devo dizer o óbvio: não esgotarei o objeto; tampouco desejo isso. No entanto, antes de abordar o quadro editorial da revista mencionada, faz-se necessário, principalmente para os mais desavisados, descrever brevemente o seu estilo crítico e o seu impacto na cultura brasileira.
No que abrange sua biografia “austríaca”, pouco abordarei. Deixo apenas alguns rudimentos: Otto Karpfen nasceu na capital austríaca em 1900 e lá morou até o final dos anos trinta, quando foi obrigado a deixar sua cidade natal para escapar da perseguição nazista. Ao seu modo, pouco a pouco, tornou-se um homem capaz de aguentar o peso de tanto passado.
Nas palavras de Mauro Ventura, seu biógrafo brasileiro:
Otto Karpfen pertenceu à geração que chegou à juventude e à idade adulta em meio aos escombros da guerra e ao turbulento nascimento da República. Na antológica frase de Karl Kraus, a Viena do jovem Karpfen assemelhava-se a um “campo de provas para a destruição do mundo”.[2]
Sobre sua formação universitária, o citado Mauro Ventura elucida:
Como a maior parte dos filhos da burguesia judaica de Viena, Otto Karpfen foi mandado à universidade para obter seu título de doutor. Na Universidade de Viena, frequentou cursos de Filosofia e de Química, formando-se em 1925, depois de defender tese sobre experiências físico-químicas no Laboratório da Fundação Spieglet (Laboratorium der Spiegletstifung de Viena).[3]
A sua vinda ao Brasil foi uma verdadeira odisseia particular. Ocorreu nos fins de 1939 e só foi bem-sucedida graças a um esquema de apoio concertado entre o Vaticano e Alceu Amoroso Lima. Aqui em nossas terras, como descreveu Alfredo Bosi, encontrou acolhimento:
Carpeaux encontrou a solidariedade de intelectuais de prestígio que viviam então no Rio de Janeiro. Entre eles, foi o crítico literário Álvaro Lins quem primeiro lhe estendeu a mão, apresentando-o a amigos influentes como Aurélio Buarque de Holanda, José Lins do Rego, Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira e Santiago Dantas.[4]
Mesmo com esse significativo apoio, não foi uma chegada fácil. Além das mudanças geográficas, materiais, afetivas, linguísticas, e de um forte abalo nas suas convicções religiosas, Carpeaux encontrou dura oposição, como ele mesmo relata:
Você deve estar informado quanto à conspiração que os senhores Genolino Amado, Carlos Lacerda e Guilherme Figueiredo montaram contra mim; sentiram-se incomodados por minha existência, e conseguiram, com a ajuda de Jorge Amado, transformar-me em “fascista”. Infelizmente, sei que, apesar das defesas do Álvaro e de José Lins, muita gente continua a acreditar nisso, sobretudo na província. O prejuízo não me importa, mas sinto-me profundamente ferido.[5]
A viagem ao Brasil fez Carpeaux escolher a vereda da crítica literária. Antes, em seus primeiros dois livros, escritos quando ainda residia na Áustria, apontara à direção da especulação filosófica e da abordagem histórico-social. Em nossos trópicos, sendo ele um sujeito dotado de um exuberante arsenal crítico e metodológico, fluente em mais de uma dezena de idiomas e com uma experiência de já ter trabalhado como jornalista político e cultural, a sua chegada promoveu um novo paradigma em nossa cultura literária, dado que no momento em que se inicia a sua produção, princípio da década de 1940, a crítica especializada ainda engatinhava no Brasil. Percebendo isso, não só se naturalizou cidadão brasileiro como se debruçou sobre os nossos escritores, como ele mesmo relatou:
A página está gravada na minha memória por motivos pessoais. Foi em 1940. Em São Paulo. Circunstâncias mui especiais, parecidas com o enredo de um romance pessimamente inventado, me levaram a estas paragens. Vivi, naqueles dias, sem vontade de viver e sem esperança. Aprendi o português só por meio de leitura, porque o assunto “Brasil” começou a interessar-me muito. Cheguei a vender alguns poucos livros trazidos da Europa para comprar outros, num sebo da rua Benjamin Constant. Ali descobri Machado de Assis. Ali descobri Sobrados e Mucambos, então vol. 64 da Brasiliana. E ali descobri uma página que me fascinou por muitos motivos, inclusive pelo exemplo do europeu que sucumbe no Brasil a forças invencíveis de uma vida nova em terra nova. Hoje, releio aquela página com olhos de quem dá graças por não ter sucumbido, dando graças à inteligência brasileira.[6]
Em nosso solo, Carpeaux foi acalentado. Como apontou Olavo de Carvalho:
Carpeaux não demorou a tornar-se uma figura central nos meios literários cariocas, fazendo um vasto círculo de amigos, entre os quais se destacavam, além de Aurélio Marques Rebelo, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Augusto Frederico Schmidt, Jorge de Lima, Herberto Sales. Esses e muitos outros escritores costumavam-se reunir quase todas as tardes na Livraria José Olympio, que se tornou assim o centro da vida literária carioca.[7]
Agradecido pelo afeto que aqui encontrou, produziu muito à cultura brasileira, tanto que, durante as décadas de 1940 a 1970, exerceu uma atividade crítica contínua e incansável. Homem dotado de uma capacidade humana industrial, publicou centenas de artigos em ritmo quase semanal, redigidos para um público portador de certa cultura literária. Como ele escreveu em seu artigo Álvaro Lins e a Literatura Brasileira:
Acho que um intelectual recebido num país estrangeiro não tem o direito de aproveitar-se desta hospitalidade sem o dever, um dever muito rigoroso, de interessar-se profundamente pela literatura desse país, até às últimas possibilidades da compreensão: há de iniciar-se.[8]
Seus textos exerceram uma influência decisiva ao então pequeno campo literário brasileiro. Os motivos para esse êxito não foram poucos, mas merecem destaque a originalidade de muitas de suas interpretações e os autores que ele trouxe às rodas culturais brasileiras. É de se ressaltar também o seu feito de em apenas três anos percorrer um itinerário pessoal considerável: de refugiado a um de nossos mais significativos mediadores culturais, atuando, de modo ainda difuso, na formação do chamado leitor culto, inclusive na esfera de nossas elites intelectuais.
Como qualquer crítico cultural, ao transformar este ou aquele fato em notícia, Carpeaux cumpria uma função de legitimação, delimitava em seus espaços aquilo que merecia ser difundido, criticado e, por isso mesmo, conservado. Historiador da literatura e da música, promoveu não só uma ampliação do acesso aos livros, mas uma nova interpretação aos diferentes firmamentos da literatura nacional; fez isso mantendo a sua máxima intelectual: “Sou contra o conceito que atribui à crítica a tarefa de policiar o mercado de livros”. Obviamente, nem eu e muito menos Carpeaux ignoramos a relação de interdependência existente entre os agentes de difusão cultural e os seus produtores.
Veja-se, por exemplo, o uso que o jornalismo cultural faz das autoridades acadêmicas, a tal ponto que levou Pierre Bourdieu a falar de troca de notoriedades por legitimações culturais. Mas, especificamente no que envolve a produtividade de Otto Maria Carpeaux, ainda que não concordemos com os seus juízos, nele encontramos um homem que soube manifestar no espaço jornalístico os seus valores intelectuais de maneira franca. Fez isso sem levar em conta a posição que os agentes ocupavam na hierarquia da legitimidade cultural, construída por meio de signos de reconhecimento do legítimo e do não legítimo. É axiomático o óbvio: ele nem sempre acertou, mas quando cometeu os seus equívocos, excessos, os fez sem o adicional do embuste. Até mesmo na sempre repetida acusação de plágio de escritos de seu admirado Walter Benjamin, há meios de defendê-lo – isto escrevo sem qualquer interesse em explorar o tema, mas como um adendo. Reforço este argumento com a breve citação do já nomeado Mauro Ventura: “Estas citações incorretas demonstram que o crítico de fato não dispunha do artigo de Benjamin em mãos, comprovando a tese de que ele foi traído pela memória”.
A obra de Carpeaux deve ser compreendida no contexto de uma civilização em que a palavra escrita ainda era predominante. Eram tempos em que os bons escritores se viam estimulados pela tarefa de se comunicar com seus leitores, transmitindo os seus vereditos de literatura. Nosso crítico, mais do que escritos às gazetas, produziu a antológica História da Literatura Ocidental, obra de grandeza singular, expressão criadora que não perde ressonância social. Parafraseando Mauro Ventura, essa obra fez de Carpeaux uma espécie de São João Batista, anunciando as boas novas literárias em terras culturalmente áridas, como era o Brasil dos anos quarenta do século XX.
A visão de Carpeaux sobre a literatura brasileira
Sem muitas ambições, condenso o vasto horizonte apresentado por Otto Maria Carpeaux atinente à literatura brasileira. Fundamentado na convicção de que a literatura brasileira exprime a nossa alma quando está em contato com as nossas realidades histórica, social, psicológica, humana, ou com uma de nossas peculiaridades enquanto sociedade, nosso crítico compôs muito a respeito de nossa literatura. Seus méritos, contudo, não residem meramente em seu elogioso trabalho de investigação bibliográfica. Nosso autor não foi um cronista ipsis litteris, mas um autêntico exemplar de um observador histórico que se afasta totalmente da objetividade, esforçando-se por apreender o acontecimento em sua significação imanente, projetada nos complexos tecidos de relações políticas e culturais de sua época. Como um aplicado leitor de Leopold von Ranke, construiu a sua interpretação fundamentado no solo firme de rigorosa documentação. Propagador da sentença de que “o verdadeiro problema crítico da literatura brasileira não pode ser colocado em termos franceses ou ingleses, mas só em termos brasileiros”, Carpeaux foi um advogado de nossas particularidades literárias.
Sei que existe há décadas um relevante debate em relação ao que é literatura brasileira, seu início, seus recortes, suas características. Todavia, como a minha preocupação analítica está centrada em apresentar apenas as considerações de Otto Maria Carpeaux sobre nossos autores e diferentes temporalidades textuais, não assumirei trincheiras. Por sua vez, mesmo prezando por Antonio Candido – a quem inclusive dedica um de seus textos à Província de São Pedro –, o recorte temporal de Carpeaux está mais ajustado com o pensamento de Afrânio Coutinho:
Conforme critérios estilísticos, a “Literatura colonial” divide-se em Barroco, Rococó e Classicismo. Ao Barroco pertencem Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Nuno Marques Pereira Pita e Itapira. Do Rococó são Antônio José e Caldas Barbosa. Convém dividir a fase classicista em Classicismo Ilustrado (Matias Aires, Cláudio Manoel da Costa, Basílio da Gama, Francisco de Melo Franco) e Classicismo Pré-Romântico (Santa Rita Durão, Alvarenga Peixoto Gonzaga, Silvia Alvarenga). Ficam fora dessa classificação as “primeiras letras” do século XVI, que, por mais importantes que sejam historicamente (Vicente do Salvador!), não influíram na evolução posterior da literatura brasileira.[9]
Quanto a esse assunto, ainda fez algumas provocações. Destaco duas extraídas de seu livro Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira:
Conforme o critério político que se adotou para criar o termo “Literatura colonial” também devia existir uma “Literatura da Independência”, correspondente à época em que se fundou e firmou a independência política da nação. Mas os historiadores da literatura brasileira não usam o termo.[10]
Em compensação surgiu no Brasil, antes da vitória definitiva do romantismo, um pré-romantismo em sentidos diferentes: poetas e escritores que, depois de terem lançado os fundamentos do romantismo, se arrependeram, voltando aos modelos clássicos[…] Os historiadores da literatura brasileira não fizeram as distinções aqui sugeridas. Apenas distinguiram primeira geração romântica e segunda geração romântica.[11]
A obra Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira pode ser resumida como uma bússola intelectual, elaborada por um mestre drasticamente preocupado com os seus aconselhados. Não se trata de um livro ordenado à leitura contínua, mas de um rendoso esforço de interpretação sobre os autores, canônicos ou não, que desenvolveram a literatura brasileira. De Gregório de Matos a Vinicius de Moraes, o escritor passa longe de promover um despejo de listas banais ou meramente biográficas, visto que manifesta os seus juízos pessoais sobre a historiografia da literatura brasileira. Segundo as suas palavras: “Completa, no sentido rigoroso da palavra, uma obra destas nunca será; e a ambição de torná-la completa só favoreceria a desorientação do leitor numa floresta de citações, quer dizer, o contrário do que pretendi realizar”.
O polímata preferiu organizar a obra de maneira cronológica, anotando as opiniões que julgava necessárias, de modo que a bibliografia sobre cada autor represente a história de suas fortunas críticas, acrescida de seus juízos. Em suas palavras: “Segui o meio caminho entre José Veríssimo, que se limitou principalmente às ‘belles-lettres’, e Silvio Romero, que também incluiu cientistas de toda espécie”. Escrita na década de 1950, quando nem havia completado vinte anos de sua chegada, Carpeaux apresenta não só uma dilatada conversa com a nossa literatura e uma suficiente pesquisa biográfica de nossos autores, mas alguns conceitos que merecem destaque, como os emitidos às obras de Machado de Assis e Lima Barreto:
Surge o mais grave problema que tem de enfrentar quem se ocupa com o passado literário do Brasil: um escritor contemporâneo do naturalismo e do parnasianismo, que não pertence a este nem àquele grupo, é justamente a maior figura da literatura brasileira: Machado de Assis.[12]
(Lima Barreto) O grande representante do romance carioca não foi desprezado em vida; suas obras foram registradas pela crítica, até mesmo pela acadêmica. Então e depois não faltavam os elogios. Mas por motivos ainda não estudados acabou essa precária glória justamente com a vitória do modernismo de que Lima Barreto fora percursor. Seguiu-se longo eclipse.[13]
É indispensável o apontamento de que esses juízos não foram uma característica presente apenas em seu livro superficialmente analisado. Seu estilo analítico mantém-se ajustado ao que desenvolveu em seus artigos jornalísticos. Observem alguns exemplos:
Olho para a Espanha, a França, a Inglaterra, a Alemanha – mas, com exceção da Itália, não vejo país que tenha atualmente dois poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Não esqueço Cassiano Ricardo, nem Murilo Mendes, nem João Cabral de Melo Neto. Admiro Ferreira Gullar, Thiago de Melo e Moacyr Félix; e muito. Em suma: a poesia brasileira parece-me manter-se na altura (nunca antes alcançada) de 1940 e 1945.[14]
Certamente, a alma deste romancista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de simpatia para com todas as criaturas, é muito mais vasta do que um mestre-escola filantrópico pode imaginar; abrange até o mudo assassino Casimiro Lopes, até a cachorrinha Baleia, cuja morte me comoveu intensamente: “Tat twam asi”. A misericórdia do pessimista para consigo mesmo é tão compreensiva que medita todos os meios de salvação, para deter-se apenas no último: a destruição deste mundo, para libertar todas as criaturas “Um mundo llamado a desaparecer” É preciso destruir o mundo exterior, para salvar a alma.[15]
Durante muito tempo, afirmou-se que Machado teria sido homem insensível às grandes causas que em seu tempo sacudiram o país. Só poucos críticos, entre eles o Sr. Raimundo Magalhães Jr., o têm defendido contra essa acusação de indiferença. Mas, para dizer a verdade, estes e aqueles não me aprecem ter plena razão. Machado pode ter sido isto e aquilo ao mesmo tempo. O interesse pela vida pública e seus problemas não é sinônimo de partidarismo. “Defender causas”, permanente e ainda por cima ardorosamente, é profissão do advogado, dever do polemista e direito da juventude e de quem nunca passou a amadurecer. Machado de Assis não defendeu causas; pelo menos deixou de fazê-lo depois de ter amadurecido como escritor.[16]
Percebam que Carpeaux não é um banal incorporador de princípios ou fórmulas prontas, nem mesmo de suas referências mais evidentes, sejam elas Benedetto Croce ou William Shakespeare. Suas análises não só recorrem a seus juízos éticos ou intelectuais, mas assentam-se como convites que, quando aceitos, submetem os seus leitores a exames de consciência. Suas sílabas pavimentam um caminho que valoriza a obra e não o método: “A eficiência dos processos novos não depende das teorias. Um Faulkner, que é dos romancistas mais modernos e dos maiores do nosso tempo não tem teoria alguma”. Por esse motivo, justificam-se os seus elogios destinados a intelectuais com elaborações antagônicas. Em um número eloquente de suas redações, ocorre uma elaboração detalhada na escolha de palavras, capaz de promover uma amálgama entre os conhecimentos herdados com os conhecimentos adquiridos, aventura fabulosa que tão bem encarnou.
Como qualquer historiador, de Heródoto a José Murilo de Carvalho, não sou capaz de realizar uma verificação plena da verdade histórica; deste modo, sem dispensar as probabilidades especulativas à investigação do tema que aqui examino, encerro a minha pretensa tentativa de sondar os valores expostos por Carpeaux à literatura brasileira. Prossigo para o mencionado ponto nevrálgico deste escrito.
Otto Maria Carpeaux e a revista Província de São Pedro
Previamente às colaborações que dão título a este trabalho, amplio o comentário que fiz sobre o que foi a revista Província de São Pedro, publicação que circulou, principalmente, no Rio Grande do Sul, por doze anos, contabilizando um total de vinte e uma edições. Amparada financeiramente pela Livraria do Globo, tinha como seu principal idealizador o intelectual Moysés Vellinho. Seus propósitos estavam fixados na tentativa de incentivar as atividades culturais no Rio Grande do Sul, “sem que para isso, fossem necessários mergulhos às águas rasas da retórica regionalista”. Como resume Iuri Almeida Müller, em seu artigo Simões Lopes e a Revista Província de São Pedro – Valorização e Releitura de Uma Obra:
A intenção era a de publicar escritores consagrados e com algum alcance para além dos limites estaduais e abrir as portas para os que iniciaram há pouco. Por outro lado, recuperar autores e intelectuais do passado, esquecidos por ora, mas que se enquadravam na proposta literária e editorial da revista. Assim, faria a produção cultural gaúcha manter-se em movimento, em constante produção e multiplicação, e ao mesmo tempo se esforçaria para que os textos fossem lidos também em outras províncias, que circulassem pelo país.[17]
Não irei discutir as razões do encerramento da revista Província de São Pedro. Tampouco a visível lacuna que o seu fim causou à discussão intelectual do Rio Grande do Sul. Contudo, realço o seu legado, não só por seus lançamentos autorais, mas, especialmente, por seu esforço dialético quanto à discussão das particularidades regionais e das idiossincrasias que o tema “regionalismo” tanto suscita. Procurando ressaltar esse valor, fiz questão de examinar cada um de seus exemplares, e não apenas os onze textos que o austro-brasileiro apresentou à coluna Letras Estrangeiras.
Otto Maria Carpeaux escreveu para os respectivos exemplares: 6, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18. Em seus artigos, encontramos muito mais do que aprovações aos textos clássicos da literatura ocidental. Suas revelações permitiram que o público brasileiro acessasse literaturas desconhecidas ou nem sempre bem quistas em nossos ambientes literários. Nas suas palavras: “Escrever no Brasil, sobre literatura hispano-americana significa – sei bem disso – tocar em assunto pouco apreciado entre nós”. E ainda: “Fica bastante acessível no Brasil apenas a literatura argentina, que não é o ramo mais forte da árvore multiforme. Arranjar um livro venezuelano ou boliviano é dificílimo”.
Coerente ao seu estilo, não se confinava às burocracias do fingimento, assumia posições acerca de nossa então situação no mundo das letras:
Embora a literatura hispano-americana seja quantitativamente uma das mais ricas do mundo, a nossa, a brasileira, me parece bastante superior. Elas não têm um Machado de Assis. Mas possuem em compensação, certos valores que não se encontram entre nós, ou antes que não se encontram assim entre nós.[18]
Ainda que o seu âmago textual fosse outro, havendo alguma intimidade com os seus conteúdos, nosso autor não se furtava de comentar as anedotas de nossa vida literária:
O que foi, na realidade, a visita de Albert Camus no Rio de Janeiro? Um dos escritores mais sérios do nosso tempo foi arrastado pelas “boites” de Copacabana, pelos salões da granfinagem, por “salas de discussões” em que repórteres, disfarçados de estudantes, lhe dirigiram perguntas de entrevista; iludiram-no com macumba habilmente encenada; e mal conseguiu Camus esquivar-se de uma recepção na Academia Brasileira de Letras, onde o autor da “Peste” seria saudado pelo Sr. Cláudio de Sousa e exorcizado por D. Aquino Correia. Nas pausas dêsses trabalhos, Camus fêz conferências, uma que foi acontecimento mundano e outra sôbre Chammfort, inspirando ao Rio de Janeiro a dúvida assustada: “Quem é Chamfort?”. Depois embarcou. Deixou a alguns novíssimos que já não sabem ler francês a convicção de que a literatura francesa começou com Camus; legou a alguns menos novos, aos quais escreveu autógrafos nos livros, a sensação confortadora de serem oficialmente reconhecidos pela França; e saiu do Brasil – conforme sua própria confissão pessoal – profundamente aborrecido.[19]
Além da visita de Camus, Carpeaux também descreveu a visita de Sartre. Sobre este emitiu a seguinte crítica:
Os últimos romances de Sartre revelam a mesma decadência, como leitor brasileiro pode agora verificar na tradução de “A Idade da Razão” (tradução de Sérgio Millet é aliás magistral), essa história “insensata” de um intelectual pequeno-burguês que passa 24 horas de vida parisiense entre malandros e prostitutas, incapaz de arranjar o dinheiro urgentemente necessário para se fazer o aborto de sua namorada. Com todo o respeito devido à diferença de situação entre a literatura francesa e a brasileira – o romance “Os ratos”, de Dionélio Machado, (cujo assunto é semelhante), me parece menos pretensioso e literariamente superior. A decadência não é porém de Sartre e sim da classe à qual pertence.[20]
Por se tratar de um correspondente de textos internacionais, presumivelmente, encontramos os seus pareceres a algumas traduções feitas. Ele, que defendia o serviço prestado pelos tradutores, principalmente em países hegemonicamente monoglotas, não se omitia na hora de criticar ou elogiar os trabalhos até então desenvolvidos; contemplem:
Aqui uma citação elogiosa:
“No caminho de Swann”, primeiro volume do “roman-fleuve” “Em busca do Tempo Perdido”, que a Livraria do Globo fêz traduzir para a língua portuguesa. Nos dois sentidos implícitos nessa notícia, a expressão “acontecimento literário” está plenamente justificada: primeiro, porque a iniciativa da editora é qualquer coisa de extraordinário, sendo admirável a coragem de encarregar-se, nesses tempos de crise, de uma tarefa que serve muito à cultura literária do país do que a fins comerciais; depois, porque a tradução de Mário Quintana é de alta qualidade, digna do original – e isso quer dizer muito. Por isso, é pena que o tenham mudado para “O morro dos cinco dedos”, indicação topográfica que não quer dizer nada. Quem modificou, aliás, o título? Na capa do livro não aparece – caso inédito – o nome do tradutor. “O morro dos cinco dedos” é uma edição da Ipê, São Paulo.[21]
Para cá, uma apreciação com reparos:
Traduzido também saiu no Brasil o primeiro volume das memórias de Churchill: “The Gathering Storm”. Mas prefiro não dizer nada sobre a tradução na qual os leitores brasileiros nem podiam adivinhar o extraordinário talento literário do famoso estadista.[22]
Quanto a outros propósitos, os artigos também tinham a finalidade de difundir autores desconhecidos do leitor brasileiro, promover os mais recentes lançamentos editoriais e, sem dúvida, discorrer acerca dos clássicos ocidentais – que, nos trabalhos de Carpeaux, tratam-se dos notáveis textos europeus. Compilando essas intenções, reuni alguns exemplos:
Acerca dos recém-lançados comentários universitários sobre o inesgotável Shakespeare:
“Um dos maiores estudiosos da história do teatro inglês, Allardyce Nicoll, é o editor do ‘Shaespeare Survey’, publicação anual da Cambridge University Press. Acaba de sair, em 1948, o primeiro volume.”[23]
Sobre o impressionante panorama literário dos Estados Unidos de seu tempo:
“Hemingway, Faulkner, Dos Passos, Thomas Wolfe, Steinbeck, O’Nell, T. S. Poe e Henry James: a legião dos críticos literários mais importantes no momento atual do que os de qualquer outro país: o panorama é impressionante.”[24]
Ainda que Carpeaux fosse um crítico interessado a respeito de seus contemporâneos, suas análises clássicas não eram esquecidas:
“Racine não é da estirpe dos Dante e Shakespeare que precisam permanentemente de reinterpretações. Pois, é um verdadeiro clássico, talvez o único clássico das literaturas modernas. Precisa é – ser lido.”[25]
Quanto a Kafka, um de seus prediletos, escreveu na revista gaúcha:
“Os romances de Kafka [foram] mal interpretados como sátiras contra a burocracia da magistratura.”[26]
“O modelo evidente dos romancistas metafísicos é Kafka.”[27]
Seus textos à Província de São Pedro, bem como a carreira como um todo, fornecem uma espécie de “panorama do movimento literário internacional”, constituído não só com predileções, mas com equanimidade analítica:
Curtis é tradicionalista; nas preferências e idiossincrasias políticas, na técnica novelística e no idealismo dos seus critérios morais. Daí nem todos acharão o livro simpático – eu tampouco acho – mas o senso de justiça nos obriga a reconhecer as qualidades literárias e morais de Jean Louis Curtis.[28]
À proporção que comunicava os seus notáveis, expurgava os seus insuficientes:
“Christopher Isherwood é seguramente o pior romancista de língua inglesa, pelo menos entre os que têm pretensões literárias… A literatura de Christopher Isherwood não é Ação, nem Expressão e sim uma droga.”[29]
A presença intelectual de Otto Maria Carpeaux foi toda cerebral, e mesmo com os seus entretons, ela ainda o faz viver. Embora tenha passado os seus últimos anos redigindo modestos verbetes para enciclopédias e artigos de oposição à ditadura na imprensa clandestina do final dos anos 1960, sua verdadeira competição nunca foi contra o efêmero político e os seus conflitos de interesses vacilantes. Sua inteligência sempre trabalhou com força à resolução das tragédias inerentes aos questionamentos da condição humana. Mesmo em sua fase de intensa atuação política, permaneceu inalterado o seu conceito de que uma obra de ficção não pode se transformar em tratado político em razão de ser a arte símbolo e não um documento do real. Em todo o tempo, conservou o seu aforismo literário:
Em tese somos contra a utilização de obras literárias como documentos de história social. Para excluir equívocos: o sociólogo tem o direito para fazer isso; a consideração das expressões artísticas como fonte de análises da psicologia coletiva até constitui conquista notável da sociologia moderna. Mas é outra a situação do crítico literário que, agindo da mesma maneira, acabaria perdendo o senso de diferença entre Faulkner e um romance policial qualquer.[30]
Em concordância ao ensinamento de Joaquim Nabuco – “Qualquer receio que se insinua em um orador destrói a metade de sua ação” –, foi um autor que transformou as páginas da revista Província de São Pedro em suas tribunas de honra. Mesmo que o seu grande momento jornalístico tenha sido executado no Correio da Manhã, a revista gaúcha foi frequentada por um crítico tão dogmático quanto sensível, que não hesitou em seus combates – “O noticiário literário está sendo ‘dirigido’ mais ou menos invisivelmente pelas grandes e pequenas casas editoras, precisando de publicidade para seus fins imediatos”[31] – e que, conjuntamente as suas guerras, humanizava os seus autores examinados:
Mas o verdadeiro Heine não foi revolucionário nem romântico; não foi um socialista alemão nem um saudosista internacional, mas sim um espírito que chegou a se libertar de todos os preconceitos e prejuízos do século XIX para mergulhar em profundidades poéticas da Idade Média, do Oriente hebraico, das origens da humanidade.[32]
Apesar de todo o desassossego de sua vida, cometi o arrojo de analisá-lo. Juntei as minhas sílabas ao afortunado espólio construído por notáveis. Se há algo que quero deixar para esta conclusão, respeitando os protocolos das mensagens finais, é a originalidade do empreendimento que foi a revista Província de São Pedro, espaço que deixou os pensamentos de Otto Maria Carpeaux sempre muito bem acompanhados. Tenho o conhecimento de que todas as veredas de suas páginas ainda não foram exploradas, a meu modo, fiz isso com a especificidade de meu recorte; por esse motivo, sem qualquer frivolidade, anseio que este texto estimule futuras pesquisas. Inspirado nos propósitos desses vinte e um exemplares produzidos e parafraseando o líder dos provincianos, o supracitado Moysés Vellinho, almejo que o nosso sentimento produza cultura e não simples expressões geográficas, ocorrência de uma banalização do apreciável caráter regional de nossa vasta literatura.
[1] MARTINS, Wilson. A grande inteligência de Otto Maria Carpeaux. O Dia. Curitiba. 28 de janeiro de 1943.
[2] VENTURA, Mario, apud JANIK-TOULMIN, op. cit, p. 67. De Karpfen a Carpeaux. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p. 47.
[3] Id., p. 22.
[4] BOSI, Alfredo. Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 62 e 63.
[5] Verificada em “Carta a Gilberto Freyre, datada de 1944, publicada no livro: VENTURA, Mauro Souza. A crítica e o campo do jornalismo: ruptura e continuidade. Cultura Acadêmica Editora, 2015.
[6] CARPEAUX, Otto Maria. Artigo: O Estilo de Gilberto Freyre. O Estado de São Paulo. São Paulo, 6 de agosto de 1960.
[7] Prefácio (Ensaio introdutório) escrito por Olavo de Carvalho no livro: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: 1942-1978 – Volume I. De A Cinza Do Purgatorio até Livros Na Mesa. São Paulo: Topbooks, 2006, p. 39.
[8] Título do artigo: Álvaro Lins e a literatura brasileira, retirado do livro: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: 1942-1978 – Volume I. De A Cinza Do Purgatorio até Livros Na Mesa. São Paulo: Topbooks, 2006, p. 458.
[9] CARPEAUX, Otto Maria. Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira. Editora MEC, 1956, p. 40.
[10] Id., p. 61.
[11] Id., p. 73.
[12] Id., p. 129.
[13] Id., p. 235.
[14] CARPEAUX, Otto Maria. Artigo: Terceiro inquérito sobre a poesia brasileira. O Estado de São Paulo. São Paulo, 11 de março de 1967.
[15] CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos: 1942-1978 – Volume I. De A Cinza Do Purgatorio até Livros Na Mesa. Artigo: Visão de Graciliano Ramos. São Paulo: Topbooks, 2006, p. 447.
[16] Id., Artigo: Machado e outros cariocas, p. 892.
[17] MÜLLER, Iuri Almeida. Simões Lopes Neto e a Revista Província de São Pedro: valorização e releitura de uma obra. Palimpsesto, Rio de Janeiro, Ano 15, n. 22, jan.-jun. 2016, p 401-415. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num22/estudos/palimpsesto22estudos08.pdf. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018. ISSN: 1809-3507.
[18] CARPEAUX, Otto Maria. Literatura Hispano-Americana. Coluna Letras Estrangeiras. Revista Província de São Pedro, Porto Alegre, número 15, p. 168 a 175.
[19] Id., número 15, subtítulo: Albert Camus no Rio de Janeiro, p. 174.
[20] CARPEAUX, Otto Maria. Livros Estrangeiros. Revista Província de São Pedro, Porto Alegre, número 16, p. 172.
[21] Id., número 12, Artigo: Lição de Proust, p. 143.
[22] Id., número 14, p. 166.
[23] Id., número 12, p. 153.
[24] Id., número 14, p. 168.
[25] Id., número 14, p. 169.
[26] Id., número 14, p. 165.
[27] Id., número 14, p. 165.
[28] Id., número 12, p. 147.
[29] Id., número 16, p. 175.
[30] CARPEAUX, Otto Maria. Revista Província de São Pedro, Porto Alegre, número 14, p. 167.
[31] Id., número 12, p.147.
[32] Id., número 11, Letras Estrangeiras: O Fenômeno Heine, p. 156.
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