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Poltrona

Depois de 15 anos, sentei nesse espelho com imagem de poltrona laranja. O chavão diz que números são mais precisos que palavras. Minha imprecisão com as palavras é alta. Só há poucos anos comecei a estudar latim e a separar o vocativo. Prestei meu primeiro vestibular quando ainda escrevia concerteza e craseava o a todos. Tanta memória para meus inúmeros erros encobrem com névoa as minhas palavras.
A moral da história desta foto é a da purificação pelo suor.
O ano é 2019 e ainda estou escutando Nirvana. Há 19 anos sei que Polly quer biscoitos. No Natal de 2004, que passei vestindo uma camiseta da Billabong laranja, ganhei o livro que conheci dois anos antes na Livraria Cultura de Porto Alegre. Trata-se de Heavier than heaven, uma biografia de Kurt Cobain assinada por Charles R. Cross. Lembro com muita precisão da primeira folheada que lhe dei. Acho que quem ama ler sempre se lembra do seu primeiro livro desejado. Não estou me referindo ao livro mais importante, mas aquele que, por diferentes razões, tenha aguçado o seu imaginário de um modo até então enigmático. Quando o folheei pela primeira vez só tinha dois reais no bolso, previamente destinados para uma casquinha sabor mista do McDonald’s. Quando o folheei pela terceira vez, nem para casquinha tinha dinheiro. Quando o folheei pela sexta vez, tinha colocado o propósito de que, sentado modestamente na livraria, iria lê-lo por inteiro. Havia chegado o momento de ler com alguma ordem esse livro, e, como não tinha os cinquenta mangos para adquiri-lo, restava-me a perseverança. Minha mãe me prometeu que seria ele meu presente de Natal ou aniversário. Ela cumpriu essa palavra dois anos depois. Semanalmente, anotei em uma caderneta da Tilibra com capa de paisagem a página em que parava a leitura. Em menos de um trimestre, havia concluído todas as suas páginas. Na época, essa conclusão foi um feito comemorado. Mesmo com a leitura devidamente concluída, fiz questão de ganhá-lo de presente. Com a minha incipiente mentalidade de historiador, percebia que precisava guardar essa fonte material.
Não havia no mundo lugar que mais amava. Muito pela segurança que senti nessa máquina compensatória de vazios materializada em uma poltrona laranja. Eu ainda me sinto seguro nessa livraria que, com as voltas do universo, hoje me deve até alguns milhares de reais. Eu simplesmente não tenho outro estado físico ou mental na vida que não seja o de usar meu passado como matéria prima para meu desenvolvimento humano.
Ainda que a minha imponência de leitor fosse a de um Luís XV com poucos pentelhos no saco, nesse mesmo período, usava um tênis Reff falsificado que tinha uma maldita tarja vermelha que sempre revelava os modelos piratas.
Os anos se passaram, troquei os livros lidos, mas nunca o lugar do deleite.
Mais alguns anos se passaram e então já era 2012. Nesse ano eu já escrevia com certeza, tinha uma biblioteca particular de cinquenta livros e havia começado a trabalhar na loja da operadora Claro, que está localizada no mesmo shopping da Livraria Cultura.
É bem verdade que como vendedor não deixei muitas saudades porque vivia em um mundo bem diverso desse. Dediquei todos os meus intervalos às leituras. Absolutamente todos. Até mentia que iria ao banheiro cagar (porque assim teria mais tempo fora da loja) para poder tirar mais alguns minutos de leituras ou para dar uma passeada nas estonteantes estantes dessa livraria.
Como colega de trabalho, mergulhei em um profundo isolamento que seguia a minha tendência natural de estudar nesse espaço que há anos me acolhia. Passava as minhas folgas, que quase sempre caiam em dias de semana, lendo nessa livraria mágica. Ainda que eu retornasse na minha única folga da semana para o mesmo shopping em que vendia planos de internet 3G, estar na Livraria Cultura era ficar conscientemente isolado de minhas circunstâncias e inclinado para meu destino.
Todo meu salário era devidamente dividido para não atrapalhar as minhas aquisições literárias: mensalidade da PUCRS, boletos, treze expressos mensais, doze salgados na faculdade e três almoços no McDonald’s. Em um intervalo de um ano como funcionário Claro e Net a minha biblioteca já contava com duzentos e três exemplares.
Percorri caminhos tortos, mas a ideia de obediência sempre me trouxe de volta.
Fui demitido. Formei-me professor de história. Fiz hangout com o professor Olavo de Carvalho. Rezei com o Percival Puggina. Casei. Conheci meu pai. Minha irmã nasceu. Minha irmã morreu. O Matheus Garcia continuou sendo um péssimo jogador de futebol. Tomei guampas. Acolitei a ordenação do Padre Cléber. O Marcus Boiera continuou usando a palavra patife. O Padre Cléber tornou-se meu pai espiritual. A Talita deixou de ser a minha aluna e passou a ser minha irmã. O Roberto deixou de ser um sancto. A Ana deixou de ser só a irmã do Marcus. O Enrico nasceu. A Bella nasceu. Lancei meu primeiro livro. Tornei-me um best-seller. Ministrei aula no Massangana. O D’Alessandro mandou um abraço para a minha cadela D’Alessandra. Levei flores para o túmulo de Carlos Gomes. Conheci a Luiza. Noivei com a Luiza. Engravidei a Luiza. Tudo isso ocorreu comigo frequentando o mesmo lugar que um dia entrei sem ter dinheiro para alienar-me às compras.
Você não disse que não tinha passado?
Nunca disse isso. Gosto de saber por onde andei. Retornar para essa mesma poltrona laranja para lançar meu segundo livro, com a honra de ser pai da Helena e de ter feito de uma produção independente um marco editorial deste país, pouco valeria se eu não soubesse irrigar meu coração com a noção de que o suor é o caminho à purificação.
Ter sentado pela primeira vez nesse macio estofamento laranja foi um fato que em definitivo mudou a minha vida.
Lindo texto… parabéns, recentemente comecei a acompanhar teu trabalho…e agora sou sua fã! Sucesso e paz…
Bela história… seus filhos e netos serão abençoados, pois vc tem muito o que contar a eles. 🙂
TEXTO FANTÁSTICO . AGRADEÇO AO BRASIL PARALELO POR APRESENTAR PESSOAS TÃO INTERESSANTES.
Caralho prof, fiquei até envergonhado da minha baixeza literária e intelectual, porém, o teu trajeto de vida e teu exemplo de professor e pensador é instigante. Obrigado por se doar tanto, prof. Abraço!
Me emocionei. Toda história de vida é linda mesmo! Parabéns, muito sucesso. Também conheci pela Brasil Paralelo, que me apresentou pessoas magníficas que hoje sigo com prazer.
Um verdadeiro incentivo para a vida de estudos, valeu professor!